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A série "Veneno", da HBO Max, faz justiça a um ícone


Hoje venho falar sobre a série que mais me impactou nos últimos tempos: "Veneno", distribuída pela HBO Max. Ela conta a história de Cristina Ortiz, uma prostituta espanhola que se tornou uma grande personalidade da mídia nos anos 1990, trazendo para o jantar das famílias tradicionais a discussão da pauta transgênero. 

Cristina ganhou espaço na televisão do único modo como este meio de comunicação permite a entrada de pessoas como ela: por acaso e com altas doses de sexualização. Ela estava se prostituindo no Parque del Oeste, em Madrid, quando chamou a atenção de uma repórter do programa "Esta Noche Cruzamos el Mississippi". O carisma e os comentários de duplo sentido da garota de programa, conhecida como La Veneno, chamaram a atenção de todo o público. Logo ela se tornou atração fixa do show. 

A vida de Cristina virou uma verdadeira novela. Através do programa ela pôde reencontrar seus pais, precisando lidar com a desaprovação de sua mãe em relação à sua identidade de gênero. "Sim, sou transexual, eu sou, não tenho porque negar", La Veneno disse ao ficar frente à frente com a genitora. 

Sua carreira viveu uma forte decadência, incluindo filmes pornográficos e até mesmo uma dura estadia em uma prisão para homens. La Veneno, que foi tida como uma das mulheres mais belas da Espanha e um ícone LGBTQIA+, morreu como uma subcelebridade em 2016. 

A série sobre ela vem para fazer justiça e provar que Cristina foi verdadeiramente um ícone. O maior ganho da produção é o paralelo que faz com a realidade, já que retrata o período em que a jornalista Valeria Vegas escreveu o livro de memórias da vedete. "Veneno" mostra a busca da protagonista por amor e aceitação, em um mundo que nunca a aceitou como ela era. 

Cristina Ortiz era atacada desde a infância por ser diferente das outras crianças. Na vida adulta, ela precisa lidar com homens que se aproveitavam de suas fraquezas e não perdiam a oportunidade de discriminá-la por não ser cisgênero ou por ter precisado viver da prostituição em decorrência do desemprego. No entanto, os momentos mais desesperadores aconteceram na prisão. É triste pensar que até hoje mulheres trans e travestis são submetidas a presídios masculinos, com todos os perigos que oferecem a pessoas como elas. 

Rejeitada pela família biológica, Veneno formou sua própria família entre as prostitutas que a acompanhavam no Parque del Oeste. Vale a pena destacar sua melhor amiga, Paca La Piraña. O melhor de tudo é que Paca é uma ótima atriz, uma artista hilária, e desempenha o papel dela mesma na série. A justiça trazida na trama criada por Javier Ambrossi e Javier Calvo contempla Paca de modo especial, apresentado-a de volta à mídia e permitindo que fizesse as pazes com o passado. A justiça está ainda ao fim do arco de oito episódios, quando La Veneno tem a despedida que merecia. 


Algo que vale a pena destacar é que os autores não apelaram para o transfake, prática de chamar pessoas cisgênero para interpretar pessoas trans. Três mulheres trans vivem Cristina Ortiz, estas são Jedet Sánchez, Daniela Santiago e Isabel Torres. Todas elas exercem muito bem o papel e a transição entre uma e outra é feita de maneira impecável. Ressalto a atuação de Daniela, que inclusive chegou a morar com La Veneno na juventude e pôde interpretá-la lindamente. 

Foi bastante impactante ver em cena tantas pessoas que divergem do gênero socialmente imposto, principalmente porque aqui no Brasil estamos acostumados a tramas onde, no máximo, existe uma personagem trans, sendo que em diversas oportunidades esses papéis acabam sendo desempenhados por homens. "Veneno" oportunizou que essas artistas pudessem mostrar seu talento, retratando uma história com grande significado para sua causa. 

Como boa parte da vida de Cristina Ortiz foi televisionada, vários trechos reproduzidos na série podem ser vistos em sua versão original no Youtube. A história causa tanto fascínio que é impossível não buscar por esses vídeos após vê-la.


Encerro este texto reforçando a recomendação e deixando a torcida para que o livro "¡Digo! Ni puta ni santa, a biografia de La Veneno" seja traduzido para o português. A obra de Valeria baseou a série e deve ser mesmo muito interessante. Também faço votos de que o Brasil contemple suas atrizes trans e travestis com histórias diversas, possibilitando que vivam da arte sem as inúmeras de dificuldades que encontram hoje. 

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