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Resenha de HQ: "Angola Janga", de Marcelo D'Salete














Transmitir a história de resistência do povo negro no Brasil nunca esteve entre as prioridades da escola ou de qualquer governo que tivemos, de modo que muitos feitos desse grupo acabam minimizados ou apagados. Um deles é o Quilombo dos Palmares, personificado na imagem de Zumbi e relembrado anualmente, em novembro. Obras como a história em quadrinhos "Angola Janga", de Marcelo D'Salete, contribuem para que esse marco não se perca.

O trabalho leva este nome porque era assim que os quilombolas chamavam sua comunidade, uma "pequena Angola", composta por diversos mocambos, como Acotirene, Curiva, Tabocas e a capital, nomeada Macaco. Esta tinha a população equivalente às das grandes cidades da colônia. O romance histórico se passa no período de queda do reino dos palmarinos, situado em Pernambuco. 

Esta obra tem ilustrações em preto e branco, contando com passagens de documentos históricos na separação capitular. Através dela, o autor faz mais que um relato histórico. "Angola Janga" é um trabalho artístico abstrato que encanta e convoca à reflexão. Esse viés é uma boa solução para supor o que não se sabe ao certo sobre Palmares, sem cair no revisionismo histórico que insiste em tentar diminuir sua importância. 

Apesar de também retratar batalhas épicas, Marcelo D'Salete traz elementos da cultura, religião e organização social daquele povo. Aliás, organização é a palavra chave. Era fácil para os colonizadores classificarem os palmarinos como selvagens, a fim de desumanizar a figura dos que  em sua visão  só serviam para lhes servir, mas em "Angola Janga" entendemos como essa gente foi munida de estratégia e planejamento, fatores primordiais que garantiram sua sobrevivência por tanto tempo.

Sim, o quadrinista conta a história de Zumbi em sua grandiosidade, mas faz questão de demonstrar como o quilombo foi muito além da imagem deste líder. Muitos outros guerreiros e guerreiras chegam ao conhecimento do leitor que, até então, vinha personificando Palmares nesta figura icônica. 

Na sociedade há, de fato, um movimento para desmerecer a luta de Zumbi pela liberdade e emancipação de seu povo. Inclusive, boatos de que ele teria escravos são argumentos comumente utilizados para tal. Algo infundado, já que a estrutura social de Palmares foi apenas descrita por aqueles que queriam destruí-la e não há indícios de que seus moradores reproduzissem a cultura dos colonizadores. 













Desde que li "O Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" (todo mundo comete erros, não me julgue), sempre inicio leituras sobre a figura de Zumbi com certo pé atrás, esperando que algo nesse sentido seja abordado. O momento chegou na HQ em questão.

 Há cativos em Palmares  um padre diz a Zumbi.
 Não como nos engenhos e vilas  o quilombola responde.

O assunto é encerrado aí no diálogo dos personagens, o que me pareceu perigoso, capaz de contribuir para a narrativa desagradável disseminada constantemente. Depois de alguma reflexão, preferi entender que os "cativos" seriam inimigos que tentassem contra os mocambos. Felizmente, ao fim da história em quadrinhos, Marcelo D'Salete traz um glossário e, além de explicar os termos utilizados na obra, retoma o assunto de modo mais explícito em seguida.
                                                                               
"Devido ao estado permanente de defesa e guerra, envolvendo soldados, espias e traidores, o cativeiro temporário pode ter sido uma estratégia de monitorar os novos integrantes raptados dos povoados coloniais", ele escreveu na página 421. O trabalho de pesquisa de Marcelo durou onze anos e lhe deu certa propriedade para tratar sobre o assunto, algo que faz de maneira responsável. 

Meus personagens preferidos foram a guerreira Andala e a menina Dara. No início do capítulo 11, nomeado "Passos na noite", esta última protagoniza um momento bastante interessante, talvez o maior ganho que o elemento ficcional tenha trazido a "Angola Janga". Saímos das matas da Serra da Barriga e acabamos transportados a uma grande metrópole, onde Dara aparece cabisbaixa em um beco dessa cidade. Interpretei a cena como retrato da angústia causada pela necessidade de emancipação que o povo negro ainda tem, bem como uma crítica ao capitalismo.













Embora o quadrinho em questão se comprometa a contar uma história de Palmares e não a história, este entrega ao leitor muito mais informações do que outras obras mais ambiciosas. 

Comentários

  1. Seu blog é incrivel? Onde mais posso acomoanhar seu trabalho?

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    Respostas
    1. Que bom que gostou. Eu faço um podcast chamado 100 KM Por Minuto (com reflexões minhas) nas plataformas digitais e já fiz outro chamado Essa Festa Virou Um Enterro (sobre criminologia). Faço participação numa rádio aqui na Bahia, 93.1, e escrevo pra um portal local chamado Bahia No Ar.

      Espero ter mais tempo em breve pra trazer outros textos aqui no CM. Abraço!

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